domingo, 27 de novembro de 2011

Freud explica: o mal estar na civilização

Em sua obra, Sigmund Freud se refere às conseqüências da criação de uma sociedade civilizada, na qual o ser humano teve de reprimir seus instintos mais violentos. Como esses instintos não foram satisfeitos, acabaram gerando neuroses e infelicidade. Para Freud, o instinto humano é naturalmente agressivo e, assim que se liberta do sistema que o reprimia, o homem tende a destruir o meio em que vive. Para que haja o desenvolvimento de um indivíduo e da civilização em geral, é essencial que se faça um controle de todas as pressões impostas às pessoas. Existem dois princípios que regem a vida, e que entram em constante conflito: o princípio do prazer e o da realidade – também denominados instinto de vida (Eros) e o instinto de morte (Tanatos), respectivamente. Enquanto Eros age com o intuito de interagir na civilização e aproximar os indivíduos, Tanatos atua de forma oposta, ou seja, contra a sociedade.
Em seu meio, o homem se enquadra na condição de alienação perante imposições de uma sociedade repressora, sem que lhe seja oferecida a possibilidade de liberdade, e consequentemente, não é concretizada sua felicidade, entendida como a liberação das energias instintivas. Ele nunca atinge a plenitude, apenas instantes fugazes de satisfação que são resultado dos impulsos sexuais represados. Apesar de estar na condição de ser racional, a característica instintiva aproxima o ser humano de qualquer espécie animal, independente da escala a qual este pertença. Neste conflito existente entre os princípios Eros e Tanatos e as diversas análises que podem ser consideradas, a principal delas está entre o amor, cujo poder induz o indivíduo a não aceitar privar-se do objeto de desejo, e a dor, que é a sensação desagradável advinda da não realização de um relacionamento interpessoal. Segundo o autor, as frustrações de ordem sexual são aquelas que os neuróticos não conseguem tolerar e criam, através dos sintomas, satisfações alternativas que causam sofrimento ou se tornam fonte de angústias pelas dificuldades geradas em seus relacionamentos de um modo geral.
Entretanto, além da castração, o mundo civilizado impõe outros sacrifícios. O desenvolvimento cultural de um grupo social implica diretamente no relacionamento entre um número considerável de pessoas. Quando uma relação amorosa se encontra em seu ponto mais alto, o casal se basta, não havendo lugar para outro alguém. Esta é a situação na qual Eros revela todo o âmago de seu ser, no entanto, se recusa a ir mais além e permanece atuante apenas no modelo de ligação a dois. Se imaginarmos uma comunidade cultural composta de indivíduos duplos (casais) que, libidinosamente satisfeitos sejam capazes de se vincular a outros por meio do trabalho e interesses comuns, a sociedade não iria extrair energias da sexualidade. Porém, esse estado de coisas não existe, e nunca existiu. O plano real nos mostra que a civilização não se contenta com as ligações que até o momento lhe oferecemos, e então visa unir todos os seus membros entre si de maneira libidinosa, empregando todos os meios disponíveis para isso. Os indivíduos têm os caminhos favorecidos para que uma forte identificação seja estabelecida com seus semelhantes; em ampla escala a libido, que se encontra inibida, é despertada em sua finalidade, promovendo o vínculo comum através das relações de amizade. Para que os objetivos dessa civilização sejam alcançados, ela força restrições à vida sexual do indivíduo. De acordo com Freud, não somos capazes de entender a necessidade que o meio social tem de seguir este rumo, o antagonismo à sexualidade do ser. Algum fator de perturbação, por enquanto não foi descoberto. Podemos ainda detectar em nós uma dose de agressividade, e supomos que ela esteja presente também nas outras pessoas, e isso cria entraves nos relacionamentos interpessoais, gerando um alto dispêndio de energia para a civilização. A conseqüência da hostilidade primária humana é a ameaça constante de desintegração que apavora a sociedade denominada civilizada. A inclinação que o ser humano possui para a agressividade não é tão fácil de ser descartada. Freud analisa que, se tomarmos um pequeno grupo cultural de pessoas, elas se sentirão mais confortáveis se concederem a esse instinto na forma de hostilidade contra intrusos. Há um bom número de indivíduos unidos no amor, e outro tanto nada desprezível, em manifestações de agressividade.
Se o mundo civilizado impõe sacrifícios ao ser humano, não apenas à sua sexualidade, mas também à sua agressividade, é natural entender as razões que impedem a felicidade nessa sociedade. Talvez haja a possibilidade de nos familiarizarmos com a idéia de que existam dificuldades ligadas à natureza da civilização, e que estas não se submeterão às tentativas de reforma. Na última fase do pensamento freudiano, o terreno social é representado em uma polaridade constante entre duas lógicas: a da política e a da guerra, já que os fundamentos do poder estão embutidos na renúncia dos prazeres imposta aos indivíduos e na regulação da vida social. Decorrentes disso são a neurose e o mal estar, dos quais dificilmente se pode fugir. O método mais adequado para minimizar o desconforto é o tratamento terapêutico direcionado a cada um.
A grande questão é saber até que ponto o desenvolvimento cultural humano irá sobrepujar a inquietação e a angústia provocadas pelo instinto de agressão e autodestruição, natural no homem. Há um considerável domínio das forças da natureza exercido pela humanidade, que os indivíduos seriam capazes de se exterminarem uns aos outros completamente; e a consciência deste fato é a causadora de boa parte de sua infelicidade e ansiedade. No mundo atual não há lugar para utopias; o ovo do réptil está em constante desenvolvimento em nosso interior – constituindo-se a eterna luta entre Eros e Tanatos, ambos tentando se firmar.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Os degraus da sétima arte

Saindo um pouco do gênero literário, vamos falar um pouco sobre cinema. Recentemente fiz um trabalho sobre a análise das diferenças de contexto entre as cenas de duas produções cinematográficas bem conhecidas. Vamos a elas.


O Encouraçado Potemkin
Diretor: Sergei Eiseinstein
Elenco: Alexander Antonov, Vladimir Barsky, Grigory Alexandrov, Marusov, Mikhail Gomorov
Ano de produção: 1925
Obra prima de Eiseinstein, “O encouraçado Potemkin” retrata fase do período czarista. A Rússia iniciava seu desenvolvimento industrial utilizando-se de investimentos estrangeiros. O governo era autocrático e o poder centralizado.
Em 1905, marinheiros de um navio do czar se rebelam contra a tirania dos comandantes e tomam o controle do Potemkin. Após saber da morte de um marujo por causa de ‘um prato de sopa’, a população do porto de Odessa passa a apoiar o levante. As forças repressoras do regime czarista, então, esmagam o movimento com exacerbada violência.

Os Intocáveis
Diretor: Brian De Palma
Roteiro: David Mamet
Elenco: Kevin Costner, Robert De Niro, Sean Connery, Andy Garcia,  Charles Martin Smith
Ano de produção: 1987
Um dos mais emblemáticos filmes de De Palma, “Os intocáveis” mostra a Chicago dos anos 30, na época da ‘Lei Seca”.
Elliot Ness é um agente federal encarregado de capturar o gângster Al Capone, célebre chefe da máfia. Por causa da corrupção dentro do próprio sistema policial, as tentativas de Ness em deflagrar as ações do bando acabam frustradas. Após ser humilhado pelos jornais, o agente resolve reunir um grupo de homens confiáveis e incorruptíveis para auxiliá-lo na empreitada. O primeiro a se juntar a equipe é Jim Malone, experiente policial e mentor de Ness. Em seguida, eles convocam George Stone, um italiano que acabara de ingressar na Academia e exímio atirador. O quarto integrante é Oscar Wallace, contador que ficaria responsável por analisar se Al Capone estava omitindo informações do imposto de renda.

Tema da análise:
Escadaria do Porto de Odessa – O encouraçado Potemkin (EISEINSTEIN, SERGEI – 1925) Escadaria da estação de trem – Os Intocáveis (DE PALMA, BRIAN – 1988)

A produção russa, após a revolução de 1917, não apenas no cinema, mas nas artes em geral, adotou o modelo ‘realismo socialista’. Apesar das produções receberem financiamento do Estado, que tinha o objetivo de divulgar uma nova ideologia, outra forma de ver o mundo (inacessível ao cidadão comum), a ditadura stalinista estava em seu início e ainda não havia uma política acabada para a cultura. Este era um fator importante, pois garantia certa liberdade a artistas e intelectuais. A idéia era a de que a arte não tem que ser decorativa, mas sim assumir uma função social (construtivismo). Para o inquieto Sergei Eiseinstein, o ‘fazer alguma coisa’ só tem sentido no contexto coletivo, e o diretor mostra isso muito bem no filme “O encouraçado Potemkin”.  A ideologia de Eiseinstein está presente nesta obra por meio do retrato da intolerância humana, seja de qualquer origem ou período histórico. Ele não estava preocupado com a narrativa linear, pois o que dava sentido ao filme eram a montagens de atrações e intelectual – blocos de ação com uma temática, com a intenção de causar êxtase. Ou seja, uma imagem não tem sentido sozinha. A iniciativa de Eiseinstein de colocar os dois planos juntos, totalmente diferentes, em sequência, foi uma inovação para o cinema da época, cheio de planos gerais ou ultra-closes. Esses planos criam um sentido conseqüente e dialogam com o público (montagem dialética).

A cena mais famosa do longa é a da escadaria de Odessa, onde os cidadãos que apóiam o movimento dos marinheiros do Potemkin são barbaramente assassinados pelos soldados Cossacos. Em um jogo de câmera interessante, que serve para que o diretor tome parte no conflito, as vítimas permanecem sempre em close, e os algozes aparecem como ‘sombras’, configurando os elementos emocionais presentes. Em grandes momentos de tensão, o som da música se alterna, entre um crescendo frenético e depois interrompido em diversos instantes. A movimentação dos personagens é caótica, exceto os soldados, que figuram em absoluta ordem, como uma muralha descendo sobre a multidão. As cenas cruciais são a do desespero da mãe ao perceber que seu bem mais precioso havia sido levado por causa de uma briga injusta e cruel e a do carrinho com o bebê descendo as escadas, desgovernado em meio ao tiroteio. A tensão é provocada por meio dos movimentos ousados que Eiseinstein faz com as câmeras, em diversas panorâmicas e elevações, assim como nos closes dos rostos torturados pelos instantes de terror da repressão.
 

O primor de Eiseinstein recebeu, 62 anos depois, uma homenagem à altura, concedida pelo cineasta Brian De Palma. Conhecedor de planos e enquadramentos, dono de estética visual marcante e dominador da linguagem narrativa, De Palma sabe manipular a tensão e dirigir tomadas de ação. Embora esteja num outro contexto, a cena das escadas em “Os intocáveis” não provoca menos calafrios no espectador. Na escadaria da estação de trem, uma mãe desesperada vê o carrinho que leva o seu bebê descer vertiginosamente em meio aos projéteis disparados entre agentes da lei e mafiosos. O diretor organizou as tomadas em câmera lenta e, ao mesmo tempo em um ritmo alucinante. O suspense é garantido pelos instantes silenciosos e lentos em que Elliot Ness espera pelo guarda-livros de Capone, gerando grande expectativa. Os closes se alternam entre o relógio, a figura extremamente tensa de Ness, e os poucos passageiros que entram e saem da estação.

O filme “Os intocáveis” procurou expressar a realidade da máfia, da corrupção político-social presente na sociedade, assim como “O encouraçado Potemkin” deixou bem clara a questão das diferenças sociais promovidas pelo homem. No entanto, na obra de De Palma o bem vence o mal, com a moral de que o crime não compensa, bem ao estilo americano. Quanto aos conflitos ocorrentes desde o princípio da humanidade, na busca incessante pelo poder e pelo ouro, sacrificando todos os tipos de vida no planeta, quando irão terminar? Nem mesmo o mais experiente e brilhante cineasta pode prever...